quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Manobras vulpinas

Uma tempestade arrasava os campos, as árvores, os bichos, tudo ia pelos ares. Não a raposa. Essa escondeu-se num buraco da árvore e assim podia ir comendo as galinhas do galinheiro próximo, que as entreabertas lhe permitiam conquistar. E troçava do esquilo que, no cimo da árvore, tentava abrigar-se sob a sua vasta cauda, quase inútil, porque também ensopada. –“És um tolo, disse ela, julgas que a cauda te basta para te cobrires, assim pesada da água que cai? Eu meto-me no buraco e de lá comando a vida”.

Mas a tempestade, causada pelo deus das intempéries – e também das bonanças, temos de ser gratos - amaina. La Fontaine o afirma. E ei-la, agora, a raposa, a tentar safar-se da fúria do dono do galinheiro. O esquilo, do cimo da árvore, a roer as poucas nozes que a tempestade poupou, avista-a ao longe, a fugir, da matilha que a persegue. Mas, sério, sabendo das contingências da vida, causadas pelos que comandam as tempestades, não ri da raposa:

“L’écureuil l’aperçoit qui fuit / Devant la meute qui le suit. / Ce plaisir ne lui coûte guère, / Car bientôt il le voit aux portes du trépas. / Il le voit ; mais il ne rit pas, / Instruit par sa propre misère ».

Não ri da raposa, porque sabe que outra virá, se não a mesma, “sabedor arguto da sua própria miséria”, de impotência contra os que voltam sempre, no rodopio das retomas, cada vez mais semelhantes entre si.

Entretanto, na questão da Educação, uma vez mais a nossa age matreiramente, atribuindo ao povo caçador – “la meute”, a matilha – intenções que ela própria fomentou ao criar - ela-própria e a companheira ministerial - a tempestade favorecedora do ataque aos esquilos – os professores sem qualidade, responsáveis pelo insucesso escolar.

Agora ela afirma, com a apoiante ministerial, que isso foi um insulto da matilha aos esquilos-professores, que atravessaram a tempestade - criada não pelo deus das intempéries e das bonanças mas por si própria, raposa tempestuosa - com as caudas pejadas dos portefólios das instruções e dos labores, tentando não sucumbir aos pesos e às acusações; e que o ensino foi um êxito em resultados e em aumento de população escolar; e que quem os acusa de facilitismo e passagens imerecidas – a tal matilha perseguidora - está só a ofender os professores.

Vê-se que a nossa raposinha esperta trabalha bem para o voto dos esquilos em si própria, raposa matreira que inverte as questões, nas sem-razões das suas acusações, resultantes, antes, das suas maquinações.

Com efeito, eu sempre ouvi dizer que todas as reprovações escolares tinham que ser devidamente justificadas, e que bom seria, e mais eficiente, os esquilos trabalharem para o sucesso discente. Caso contrário, haveria insucesso na docência esquilina.

A haver insulto aos professores, ele foi fomentado, sim, por quem comandou a nossa vida colectiva.

Mas o resultado foi positivo, que o sucesso se fez. Como a luz, no primeiro dia.


Berta Brás



“Nós também os temos!”



“Fogo em Atenas! Aquilo é real? Como foi possível? “

Desta vez as nossas vozes quase se confundiam, tão uníssonas soaram.

Mas a minha amiga levou a melhor, na exuberância de um sentimentalismo sempre pronto a manifestar-se, e de uma rapidez de percepção panorâmica abarcando tudo o que lhe vem à rede, incapaz de passar ao lado das coisas sem reagir prontamente:

- “Ai aquela gente! E saber que vai arder tudo! Disse um deles que nem dez milhões conseguiam apagar isso. Não sei se falou apenas transtornado, na aflição do medo.”

-“Como deixaram?! Como foi possível?!” As exclamações provêm-me da angústia verdadeiramente sentida, no pensamento daquele recanto clássico donde nos veio o mito e o ocidente e o pensamento filosófico, daquela pátria que aprendemos a amar quando, no liceu, estudámos a história da Grécia, quando aprendemos a língua grega no seu alfabeto e na sua fábula, quando lemos, em tradução, a aventura épica troiana e tantas das histórias do mito trágico tantas vezes recuperado pelos que seguiram na aventura da escrita. A pátria de Ulisses e da sua ilha fiel, mas também a história paradisíaca na sua Ogígia que o nosso divino Eça tão divinamente tratou, lembrando quão mais feliz é o homem no pensamento da sua miséria e finitude do que no seu bem-estar e perfeição quando os supõe perenes. “Como deixaram?! Como foi possível?!”

-“Sabe? Estão a culpar o governo. Não é a primeira vez. Já há dois anos, ali à volta de Atenas... Mas este é pior.”

- “Pensar que de Atenas nos veio a luz...”

-“Eu acho que está tudo a arder! Olhe aqui no nosso país! Nunca houve tanta extensão de incêndios.”

- “É! Mas o Sócrates nem fala nisso! E o que ele se gaba do que fez! A Educação foi um êxito, com uma taxa de insucesso reduzida a quase metade. E nem se tratou de facilitismo, como acusam os velhotes do Restelo e arredores. Mas dos incêndios não fala.”

- “Sim, nós também os temos! Olhe o de Belas, que tem campo de golfe! Há um clube em Belas recente. Aquilo ia ardendo tudo. Apareceram moradores a dizer que é fogo posto. A gente foge porque não pode lá ficar. E lá fica tudo, nas casas a arder...

- “Sabe o que me choca muito? Que ardam os álbuns de fotografias! É como se se matasse o passado, a nossa vida toda!”

- “Mas estes da Grécia! Não é gente rica! A Grécia é um país pobre, cheio de dificuldades. O povo está revoltado. Tem que haver uma verdadeira política contra os incêndios. Felizmente há países da União Europeia que os vão ajudar agora.”

- “Deviam ser bem castigados os malfeitores que os provocam. A brandura política contra estes escapa-me. Que interesses económicos estão por trás dos incêndios? Que escandalosos sadismos haverá nestes Neros da actualidade que ninguém pune exemplarmente? E o mundo vai ardendo por todo o lado. A benemérita democracia salva os criminosos.”


Berta Brás

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